O Museu em Caçapava agora é de Caçapava

Os automóveis saem das fábricas reluzentes e impecáveis. Vão se desgastando com o tempo e perdendo seu valor. Alguns deles têm a sorte de serem resgatados por colecionadores e voltam a brilhar, como no primeiro dia. Mas a história pode ser pendular, pelo menos no caso do Museu de Caçapava, quando os carros são abandonados e ficam piores do que nunca. Finalmente eles podem ser recuperados, de novo...

Por Jean Tosetto

O Museu Paulista de Antigüidades Mecânicas, conhecido simplesmente por "Museu de Caçapava" pelos aficcionados por carros antigos, completa 50 anos de história em 2013, dos quais cerca de 20 anos em completo estado de abandono - o que certamente não era o desejo de seu fundador, o empresário Roberto Eduardo Lee, tido como o pioneiro na arte de restaurar e colecionar automóveis em terras brasileiras. Tal pioneirismo de fato pode ser questionado, o que não se discute é que Roberto Lee foi o primeiro colecionador a ganhar notoriedade, justamente por compartilhar sua paixão com o público, ao invés de trancafiar seus itens numa fortaleza escondida.

Rico e bem relacionado na alta sociedade paulista, Roberto Lee garimpava suas raridades com a ajuda de colegas olheiros, que amealhava com seu entusiasmo de antigomobilista - um termo que sequer existia na época. Se o dinheiro não era um problema, por vezes ele não era necessário numa aquisição: a credibilidade conquistada ao longo do tempo rendeu a confiança inclusive da Willys Overland brasileira, que antes de ser comprada pela Ford no fim da década de 1960, entregou a guarda de alguns modelos e protótipos ao empresário. Por vezes, o que se comprava não era um carro antigo ou clássico, mas apenas um carro velho ocupando espaço na garagem, quase a preço de sucata.

Desta forma a coleção ia ganhando corpo, com marcas européias como MG, Bugatti, Rolls Royce e Alfa Romeo; e americanas como Buick, Cadillac, Packard e Chevrolet. Motores de avião, bombas de gasolina, cartazes e até uma locomotiva completavam o acervo. Para abrigar este tesouro, Roberto Lee recorreu às antigas instalações fabris de sua Fazenda Esperança, vizinha ao Regimento Ipiranga de Caçapava - que também possui um museu muito interessante, com artefatos militares da Segunda Guerra Mundial.

Imagem que se explica por si só e realça a importância da coleção. O próprio Roberto Lee converteu-se em motorista do Packard durante a visita dos nobres britânicos à São Paulo.

No auge do Museu Paulista de Antigüidades Mecânicas, Caçapava recebia turistas oriundos de todas as regiões do Brasil e até de outros países. Revistas especializadas dedicavam artigos à coleção e muita gente voltava seguidas vezes, para apreciar não só as raridades, mas também o sítio aprazível com suas construções de tijolinhos à vista, de densas paredes revestidas internamente com madeira de lei, sob tesouras apoiadas em colunas de pé-direito alto e que venciam grandes vãos, sem contar a arborização externa e o clima campestre do Vale do Paraíba.

Paixões arruinadas

A busca por carros com potencial de interesse histórico culminou no fim trágico de Roberto Lee, cujo casamento com uma senhorita do multimilionário clã Matarazzo havia malogrado, mesmo com o nascimento de uma filha. Ao comprar um Cadillac estacionado num casarão em São Paulo, o empresário conheceu a mulher, já viúva na ocasião, que lhe tiraria a vida alguns meses depois. Tratava-se de um crime passional com arma de fogo, motivado pela recusa da paternidade de outra menina, fruto da relação fugaz. O infortúnio ocorreu em 1975 e, a partir de então, começou a lenta e contínua decadência da coleção de carros antigos, relegados ao último plano diante das disputas judiciais entre seus herdeiros, algo inerente à resolução de um complexo inventário.

Em 1982 houve uma aparente boa notícia: as instalações da Fazenda Esperança foram tombadas pelo Condephaat - Conselho De Defesa Do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico E Turístico Do Estado De São Paulo. Na verdade uma bomba relógio de efeito retardado acabava de ser acionada, afinal de contas, sempre que uma obra é tombada, qualquer reforma de manutenção ou adequação só é aprovada depois de um processo moroso e burocrático por parte deste órgão, cujo rigor visando manter a originalidade das edificações praticamente inviabiliza qualquer ação eficaz por parte de seus proprietários. É por isso que muitos deles deixam tais edificações abandonadas, pois a longo prazo suas ruínas terão a única serventia de lhes "devolverem" o terreno, para ser usado com isonomia novamente.

Aos poucos, o acervo do Museu começou a encolher. Carros emprestados para exposição foram retomados, outros foram vendidos por herdeiros. Dez anos depois o local fechou as portas definitivamente, abrindo uma vez por ano para limpeza precária dos veículos remanescentes - e depois nem isso. Estivemos lá em 2002 para conferir de perto a situação. Num relato para o site mplafer.net publicado em 2003 (portanto, muito antes do assunto ganhar a blogsfera) alertamos inclusive para a possibilidade do telhado ruir, o que infelizmente aconteceu tempos depois, quando a decadência se acelerou vertiginosamente.

O acesso principal do Museu registrado em junho de 2002. Ainda havia alguns resquícios do ambiente silvestre e bem iluminado de outrora.

O mesmo acesso em janeiro de 2011. O telhado arruinado não confirma uma profecia, mas apenas uma previsão lógica.

No final da primeira década do século 21 a Prefeitura de Caçapava passou a se interessar pelo assunto, mas nada podia fazer diante de uma propriedade particular. Peças estavam sendo roubadas e carros inteiros sendo desmontados por salafrários e vândalos. Pombas e morcegos se revezavam na tarefa de cobrir as raridades com camadas de excrementos. A água da chuva, a gotejar nos galpões, tratava de corroer carrocerias e estofamentos. Uma vergonha sem termos de comparação.

Um fio de esperança

A sorte do Museu de Caçapava é que a própria cidade cresceu, abraçando a Fazenda Esperança. A especulação imobiliária virou pressão imobiliária e os herdeiros de Roberto Lee passaram a cogitar a realização de um empreendimento residencial, na forma de loteamento da gleba. Estava aí a chave para a Prefeitura Municipal finalmente assumir o que sobrou do sonho. Por lei federal, todo loteamento urbano tem sua liberação condicionada à doação de uma parcela da área para fins institucionais, a cargo da intendência local, que ali pode construir postos de saúde, escolas, praças. Caçapava escolheu ficar com o Museu.

A doação do acervo e das instalações do Museu de Caçapava ocorreu na virada de 2010 para 2011. Não foi um ato puramente romântico e nostálgico - de benevolência - embora tenha sido muito conveniente para as duas partes envolvidas. Após a assinatura dos papéis, a secretaria de cultura do município deu início a uma operação de resgate, encarregando o funcionário público - e também colecionador de carros - Marcelo Bellato, para comandar a tarefa.

Todas a peças do acervo, com exceção da locomotiva, foram levadas para o Centro Cultural, que também já fora uma instalação fabril, no bairro de Vera Cruz. Dos quase 100 itens catalogados até a década de 1990, restaram pouco mais de 30 para contar a história, algo que, no entanto, não diminui a importância do Museu, caso ele venha a ser reaberto. No momento, este é o desafio da Prefeitura de Caçapava, que necessitará da ajuda de outros colecionadores, entusiastas, entidades e empresas que abraçem a causa.

Um Packard sendo retirado das instalações da Fazenda Esperança, em fotografia gentilmente cedida por Marcelo Bellato.

Neste primeiro momento, os carros levados para o Centro Cultural estão sendo apenas higienizados. Qualquer tipo de reforma, manutenção ou mesmo a restauração dos veículos, será efetuada apenas sob a orientação de uma empresa de curadoria que inicialmente fará a avaliação do patrimônio. Nenhum carro receberá peças adaptadas, por exemplo. Se peças originais não poderem ser mais encontradas, os carros serão expostos da mesma forma, até para salientar o que o ser humano é capaz de fazer com as coisas que ele mesmo concebe.

Torpedos sobre rodas

Retornamos à Caçapava e fomos ver de perto como estão as atuais condições do conjunto arquitetônico da Fazenda Esperança e dos carros provisoriamente abrigados no Centro Cultural. Fomos bem recebidos pelos funcionários locais, mas não tivemos liberdade para captar as imagens, sob a compreensível alegação de que parte da imprensa estava dando enfoque excessivamente negativo ao episódio, publicando apenas os veículos em estado periclitante de conservação. O trabalho já feito de limpeza de alguns exemplares não estava sendo valorizado.

Num segundo instante, porém, recebemos o consentimento para registrar dois ícones do Museu. O primeiro foi o mítico Tucker Torpedo 1948, modelo revolucionário de uma empresa de pequeno porte, que foi sumariamente boicotado pelo "lobby" das grandes marcas americanas junto ao governo federal. O carro vinha com inovações surpreendentes para a época, como a adoção de vidros laminados nas janelas, farol central ciclópico que acompanhava os movimentos do volante, cintos de segurança, aerodinâmica em forma de gota deitada. Apenas 51 unidades foram construídas, das quais 47 tem o destino conhecido: 45 estão nos Estados Unidos, uma no Japão e uma em Caçapava.

O farol central do Tucker foi roubado por alguém que não poderá vendê-lo no mercado de pulgas. Infelizmente não dá para encomendar outro pela Internet.

Contrariando a lógica reinante na indústria americana de então, Preston Tucker concebeu o Torpedo com motor traseiro.

Ainda sobre o Tucker, Romeu Nardini - diretor do Clube MP Lafer Brasil e colaborador em diversos sites automobilísticos - comenta: "O famoso Tucker, que muitos sonham em vê-lo restaurado (inclusive eu), está praticamente impossibilitado de voltar a originalidade. Além de peças únicas que foram roubadas, quando o carro chegou para as mãos do Lee já tinha algumas adaptações. O motor original está no Museu de Bebedouro em poder dos Matarazzo. Aí entra um boato: o Tucker na verdade, pertenceria ao André Matarazzo e ao Lee, e para que nenhum dos dois se desfizesse do carro, teriam separado o motor que ficaria aos cuidados do André e o Lee ficaria com o Tucker."

O motor do Tucker em exposição na cidade paulista de Bebedouro. Fotografia gentilmente cedida por Romeu Nardini.

(*) O segundo automóvel que fotografamos foi uma Alfa Romeo BP-3 1932, uma barata voadora com oito cilindros em linha capaz de desenvolver 215 cavalos de força para empurrar apenas 700 quilos. Nas mãos de pilotos italianos como Nuvolari, Borzacchini, Campari e Caracciola, conquistou diversas vitórias e pódios em Grandes Prêmios até 1937, numa época em que não havia um campeonato mundial da categoria - algo que só ocorreria a partir de 1950, com o surgimento da Fórmula 1.

(**) O exemplar do modelo que chegou ao Brasil pertencia à piloto francesa Hellé Nice - uma mulher à frente de seu tempo. Em 1936 ela aportou em terras sul-americanas para a disputa dos Grandes Prêmios de Rio de Janeiro e São Paulo. Na corrida paulistana, sofreu um acidente na última volta, vitimando cinco pessoas e ferindo outras 35 que se apinhavam nas calçadas para acompanhar a disputa. Após convalescer por dois meses num hospital, a piloto retornou para a Europa, mas o carro ficou recolhido numa garagem do departamento de trânsito da cidade, até ser entregue ao Museu décadas depois.

A Alfa Romeo com cano de escape unificado à direita do piloto: uma distração e a queimadura no braço era certa.

Para manter-se no cockpit do carro, o piloto trazia o volante de raio alongado para próximo do torax. Coragem para guiar era um requisito básico.

O futuro

Para retomar a trilha do sucesso e do prestígio, o Museu de Caçapava não pode mais se apoiar nos padrões de 30 ou 40 anos atrás. De nada adiantará restaurar as antigas edificações da Fazenda Esperança tal qual era antes, e levar os carros e outros objetos de volta. É preciso pensar em acessibilidade universal, estacionamento e sanitários dimensionados para a expectativa de público, locais para alimentação, lojas de lembranças e, evidentemente, salões climatizados de exposições, além de salas para palestras com recursos audiovisuais. Uma boa biblioteca sobre o tema também seria bem vinda.

A cidade de Caçapava ganharia muito com o Museu reestruturado. Para tanto, os rumos desta tarefa não podem ser ditados pelas incertezas das trocas de mandatos políticos. O ideal seria a formalização de uma Sociedade de Amigos do Museu, que contaria com o respaldo da Prefeitura para captar recursos e patrocínios, sejam eles privados ou públicos. O Museu também precisa de gente disposta a colaborar com idéias, peças originais, divulgação na imprensa. Só não precisa de palpiteiros de longa distância, que tecem críticas irrelevantes sem ao menos conhecer os fatos de perto.

Marcelo Bellato e o Cadillac, já higienizado, que pertenceu ao Fernando Lee, pai do fundador do Museu.

Um giro por Caçapava

A terra da Taiada - localizada no Vale do Paraíba a 100 quilômetros de São Paulo - não é conhecida apenas em função do Museu Paulista de Antigüidades Mecânicas. Quando estivemos na cidade em janeiro de 2011, gravamos cenas de diversos pontos do município. Além do Museu na Fazenda Esperança, filmamos o Centro Cultural, o Regimento Ipiranga, as pontes sobre o Rio Paraíba do Sul, algumas praças e igrejas, o hospital, colégio Ruy Barbosa, e o tradicional mercado municipal. Quem assistir até o fim da segunda parte poderá se surpreender com a identificação de uma fábrica, cujos produtos são largamente consumidos pelos brasileiros.





Veja também:

MPs em Caçapava - 2007
Eterno Vigilante
Le Mans 1967

Atualizando em junho de 2014:

Passamos ao estimado leitor informações que se revelaram falsas após investigações feitas no decorrer do tempo pela própria equipe do Museu Roberto Lee de Caçapava, agora sob a curadoria da prefeitura da cidade. É nosso dever fazer as devidas correções:

(*) O carro que seria uma Alfa Romeo BP-3 1932 é na verdade uma recriação construída a partir do conjunto mecânico de um FIAT, conforme a própria assessoria de mídia do Museu nos esclarece:

"Muito bom ver que o Museu é assunto no meio antigomobilista, sentimo-nos honrados, e para ajudar a sanar as dúvidas, deixamos os amigos informados que desmontamos todo esse bólido em questão. E foi constatado que todas peças mecânicas, desde suspensão a motor e cambio, trazem logotipos em alto relevo da marca FIAT e originais."

(**) É uma criativa lenda, portanto, a história de que este carro teria pertencido à piloto francesa Hellé Nice. Roberto Lee teria ficado apenas com o que sobrou da carroceria do carro dela, cujo restante do exemplar teria retornado ao continente europeu. Como se pode notar, o antigomobilismo é cheio de peças mecânicas e peças pregadas. Não se deve acreditar em tudo que se ouve, por mais interessante que possa ser o caso.

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