As barcas no gramado, cercadas de gente e muito verde. |
Num cantinho da Serra da Mantiqueira, encabeçando o Circuito das Águas de São Paulo, existe uma praça que anualmente recebe uma festa, com jeitão de quermesse e ambiente de circo mambembe, reunindo centenas de veículos e milhares de pessoas. Tem gente que reclama, mas se melhorar estraga. Assim é o grande encontro de carros antigos de Águas de Lindóia.
Por Jean Tosetto *
O Encontro Paulista de Autos Antigos, realizado em Águas de Lindóia, é um dos eventos mais esperados por quem gosta de carros em geral, não somente os antigomobilistas como também os novomobilistas - já que é o novomobilismo que move a economia brasileira, escrava do transporte rodoviário desde que um presidente, que virou nome de carro, criou um plano de metas mirabolantes, ainda na década de 1950.
Já participei de várias edições deste evento, nas diversas modalidades. A primeira vez ocorreu em 2002 como expositor, quando fui para a cidade sem pretensão alguma, salvo curtir meu MP Lafer na estrada, e acabei inscrevendo o carro na hora, por um único dia - sim, na época era possível fazer isso. Nos anos seguintes fui diversas vezes como mero visitante, até que resolvi escrever o livro do MP Lafer, quando passei a colher fotos e depoimentos de grande valia para este trabalho. Um capítulo inteiro do mesmo foi praticamente concebido na varanda do hotel que hospeda a organização do encontro.
Neste ano de 2013 conheci uma nova maneira de ir para Águas de Lindóia, passando para o lado de lá do balcão, com a função de promover o livro "MP Lafer: a recriação de um ícone". O pessoal da Revista Classic Show sempre monta uma banca completa na cidade, e recebi a encomenda de 20 exemplares para venda em consignação. O Clube MP Lafer Brasil também possui um estande assegurado sob a batuta de Romeu Nardini, que gentilmente me abriu espaço para conversar com os leitores e entusiastas da marca.
No estande do Clube MP Lafer Brasil, quem adquiria um livro do MP recebia de brinde uma edição da MotorMachine - nova revista bimestral de Santa Catarina. |
Pela primeira vez participei deste famoso evento em dois dias distintos, dos quatro dias que transformam a festa num autêntico carnaval de carros antigos. Na quinta-feira, dia 30 de maio, minha missão era levar 28 livros para a cidade. 20 para a Classic Show e 8 para o Clube do MP Lafer, numa expectativa mais comedida. Se sobrasse tempo daria uma volta pela praça para capturar algumas fotografias. No sábado, primeiro de junho, eu ficaria no estande do Clube à disposição dos entusiastas do MP Lafer e dos leitores do livro.
Na quarta-feira de noite encerrei o expediente no escritório de arquitetura e fui conferir livro por livro, para não levar nenhum exemplar com um mísero defeito de fabricação para o alto da serra. Cada exemplar pesa aproximadamente um quilo e separei duas caixas para colocar no porta-malas - uma delas pesando uns 20 quilos, quase meio saco de cimento. A curtição começou logo na manhã seguinte, com a pista livre pela frente, pois larguei de Paulínia, e não de São Paulo.
O trecho final do percurso é uma estradinha vicinal entre Itapira e Águas de Lindóia, que evita a passagem por Lindóia. Estes pouco menos de 8 quilômetros são os mais deliciosos da viagem, com passagens sobre pontes estreitas ladeando cachoeiras, curvas cegas em topo de morros que antecedem mergulhos íngremes, que se ligam com aclives mediante junções sinuosas. E vamos abaixando os vidros do carro e desligando o som, para sentir o cheiro de pastos verdejantes e para ouvir o motor da 156 urrar nas reduzidas.
Este Whippet Overland 1926 é emplacado na Argentina. Consta que seu proprietário veio guiando o carro. Será? |
Like a rolling stone
A chegada em Águas de Lindóia, em ocasiões como esta, lembra o trânsito complicado de uma grande capital, quando é mais rápido caminhar à pé - literalmente. O jeito foi deixar o carro a cerca de um quilômetro da praça central da cidade. Para não carregar peso à toa, fui até o recinto confirmar a presença e localização dos dois estandes que venderiam o livro. Feito isso voltei para o carro para pegar a primeira remessa. Resolvi entregar a encomenda mais pesada primeiro. Achei que seria fácil carregar, no muque, 20 quilos de livros por um quilômetro. Santa ingenuidade.
Atravessei uma quadra e pensei: "caramba, isso pesa". Mais trinta passos e: "nossa, estou fora de forma". Mais um pequeno trecho e ajoelhei numa rotatória. Invejei o jardineiro que estava de posse de uma carriola. Ele olhou para mim e aproximou o queixo do nariz, arqueando os beiços, impressionado: mais alguém, além dele, estava com a camisa suada, em pleno dia frio de outono. A camisa ficou encharcada na quadra seguinte quando sentei na sarjeta, para ver se segurava os pulmões abaixo da goela. Estava com os braços dormentes, longe demais para voltar, e longe para a cara do alho do destino. Sim, eu praguejei.
Levantei a cabeça e avistei uma loja. A balconista estava com piedade de mim. Perguntei se poderia deixar dez livros com ela, para buscar depois. Alívio momentâneo. Carregar apenas dez quilos parecia moleza, mas para alguém que já estava exaurido, aquilo parecia um bloco de pedra, daqueles que usaram na construção das pirâmides do Egito. Na subida final para o paraíso, topei com um monte de gente esbarrando em mim, só para ajudar. Mas cheguei lá. Os gaúchos da Classic Show me ofereceram uma garrafa de água mineral, rindo sem qualquer sentimento de culpa. E ainda tinha duas viagens para fazer...
Caminhando de volta para a loja, tive a ideia genial - fantástica eu diria - de comprar uma mala com rodinhas. A própria moça que havia se compadecido de mim me vendeu uma. A mala com rodinhas é uma das invenções mais importantes da humanidade. O sorriso voltou para a minha face e ainda por cima eu poderia dizer que comprei um carro em Águas de Lindóia, de tração animal. Completei a segunda leva de livros para a Classic Show e finalmente entreguei os exemplares restantes no estande do Clube do MP.
A Alfa Romeo GT Junior 1300 (circa 1970) tem uma cara tão nervosa quanto excitante. |
O ronco (do estômago)
Por aí você já pode imaginar como eu estava com fome. Hora de faturarem alto em cima da minha boa vontade. Paguei doze reais por um sanduíche de pão dormido e quando comecei a mastigar percebi que o pão deveria estar hibernando desde o inverno de 1987. Para tirar água do joelho, então, constatei que o chão do único banheiro público local parecia um balneário de água sulfurosa. Essas coisas fazem a gente desanimar com o evento. Para compensar fui até o Café do Hotel Monte Real, onde se saboreia o melhor cappuccino da América Latina - peça sempre um grande, pois cappuccino médio é sacrilégio.
Da varanda do hotel a vista parcial da alameda dos caminhões, coalhada de entusiastas. |
Com a tarde livre fui bater perna, como se os seis quilômetros já caminhados não contassem muito naquele momento. Percorri cada alameda e cada bolsão daquele formigueiro. A graça de um evento como este não se limita aos carros, muitos dos quais eu já tinha visto outras vezes. O mais legal, para mim, é ver gente de todos os sotaques e de todos os cantos. O mercado de pulgas é bem exótico e tem crescido com certa elasticidade, ao passo de ocupar uma área quase tão extensa quanto aquela destinada aos veículos.
Nestas ramificações do evento podemos fazer uma volta à infância, observando brinquedos que sequer lembrávamos que existiam. Particularmente voltei a um Natal de uns trinta anos atrás, ao ver dois discos voadores iguais aos que eu e meu irmão ganhamos uma vez. Havia um batmóvel do seriado dos anos 60 por módicos dois mil reais. Pena que eu estava sem troco. Estava sem 18 mil reais sobrando também, para comprar um mini MP Lafer com motor de triciclo, de três velocidades à frente e uma marcha ré. O carrinho estava impecável.
No começo da década de 1980, discos voadores iguais a estes emitiam luzes e rodopiavam pelo assoalho da sala de estar. |
Um MP Lafer de brinquedo, com motor de verdade. Feliz da criança que ganhar um deste. |
Interlúdio
Com o sol começando a triscar as cumeeiras das montanhas do entorno, achei melhor pegar o caminho da roça. Resolvi voltar até Paulínia pelo miolo do Circuito das Águas - uma decisão da qual me arrependi ao chegar em Serra Negra, que estava mais congestionada do que uma central de reclamações de operadora de celular. Para não atravessar a cidade resolvi escorregar pela estradinha até Monte Alegre do Sul. Deu certo. Porém, chegando na cidadela, a rua central estava interditada para uma procissão.
O policial militar me orientou a contornar a região para chegar ao acesso de Amparo. Já estava escurecendo e consegui me perder. Podem me zoar. Consegui me perder em Monte Alegre do Sul. Eu, que sempre me gabei de recusar o uso de GPS, estava resvalando na calada da noite pela zona rural do município, até vislumbrar uma saída para Amparo. Por sorte estava sozinho. Já imaginou a esposa me criticando por inventar moda na hora de voltar para casa? Felizmente ela só vai saber disso quando ler este relato.
Este Fiat centenário ficaria ainda mais bonito sem esta faixa plástica de proteção, que faz a alegria dos fotógrafos. |
Na sexta-feira coloquei alguns assuntos em dia no escritório e, no sábado de manhã, estava de volta para a estrada, rumo à Águas de Lindóia novamente. A programação da vez era bem mais leve: ficar no estande do Clube MP Lafer Brasil do anfitrião Romeu Nardini, que neste ano compartilhou o espaço com o Clube do Carro Antigo do Brasil, presidido por Ricardo Luna, que também estava lá para divulgar uma iniciativa pioneira: um curso regular de restauração de veículos antigos.
Os bons companheiros
Um de seus instrutores, o mestre Ricardo Oppi, da Oppi Old Cars, completou o quarteto. A conversa se desenvolveu quase sem interrupções, diante da Laferrari do Nardini. O Ricardo Oppi tem histórias impagáveis. Munido de seu tablet ele apresentou dezenas de fotos do processo de restauração em andamento do Monarca, um obscuro veículo fora-de-série que seria o primeiro do tipo construído no Brasil, ainda em 1952, do qual restaram apenas duas imagens para servir de referência para esta digna tarefa de Hércules.
Foi um dia muito especial. As pessoas foram chegando de vários estados: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Tocantins e Pernambuco, além do Distrito Federal. Gente que já tinha lido o livro do MP Lafer e veio para me cumprimentar. Outros pediram para tirar fotos do nosso lado e alguns pediram autógrafos em seus livros. Não serei hipócrita: cada elogio e aperto de mão que recebi teve o gosto da satisfação, que me fez crer que valeu a pena toda a dedicação para este projeto.
A visita no estande do Clube do MP era válida também para tirar dúvidas com o Romeu sobre vários aspectos, desde a obtenção da placa preta, passando pela manutenção do carro e pedindo filiação à entidade. Do mesmo modo, o Clube do Carro Antigo arregimentou vários interessados para o seu curso de restauração. Eu mesmo, se morasse em São Paulo, já estaria matriculado na próxima turma para aprender sobre funilaria, pintura, tapeçaria, mecânica, marcenaria e instalações elétricas de um automóvel.
Ricardo Luna, Lucas no colo de Jean Tosetto, Romeu Nardini e Ricardo Oppi. |
O que é mágico no encontro de carros antigos de Águas de Lindóia, é que você troca ideias com as pessoas como se fosse amigo de longa data delas. Nestas ocasiões, contatos pela Internet viram contatos reais, muito longe de ambientes assépticos de uma empresa, ou mesmo de um Shopping Center. No fim das contas, essa bagunça instituída na Serra da Mantiqueira, na divisa com Minas Gerais, é o que dá o tempero para a coisa toda. Se ficar profissional demais, perde o encanto.
O melhor está por vir
E vamos embora para casa, desta vez pela via expressa, pagando pedágio, pois a saudade da dona patroa começa a bater forte. O alvará para ir sozinho até Águas de Lindóia foi conseguido graças a um barrigão de quase nove meses. Em poucos dias me faltará tempo para pensar em carro - seja carro velho, seja carro novo. Saem as rodas, entram as fraldas. O papai e a mamãe não vêem a hora!
* Jean Tosetto é
arquiteto desde 1999 e editor do site mplafer.net desde
2001. É também autor do livro “MP Lafer: a recriação de um ícone” - lançado em
2012.
Bela crônica, parabéns!
ResponderExcluirFoi muito prazeroso conhecer pessoalmente os amigos Toseto e Nardini, que so conhecia atraves do site. Comprar o livro do MP autografado pelo autor e tirar fotos ao lado do famoso MP do Diretor, não tem preço. Parabens a todos que tanto se esforçam para manter viva a memória deste belo e inigualável carro. Até 2014
ResponderExcluirBoa noite amigo como faço para comprar o livro do mp lafer. Muito obrigado.
ResponderExcluirVisite www.vivalendo.com - lá tem todos os livros escritos ou editados pelo autor do livro do MP Lafer. Grato.
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