Os carros atuais estão cada vez mais parecidos com smartphones que se locomovem: alguns até são carregados em tomadas. Mas com o MP Lafer isso não acontece. Ainda bem!
- Você vai ao Salão do Automóvel de São Paulo neste ano?
- Não.
- Não?!
- Cara, há alguns anos visitei o Salão num dia de semana. Estava superlotado. Os carros de luxo e os esportivos estavam isolados do público e a gente nem conseguia chegar perto. Sempre tinha um elemento na frente, levantando os braços para tirar fotos. Não sei para quê tantas fotos. Nos carros comuns a gente até consegue experimentar o volante, mas para fazer isso prefiro ir numa concessionária, onde ainda servem o café de graça. O café do Salão é caríssimo. Prometi que só voltarei nele se apresentarem um disco voador.
- Mas tem coisas que a gente vê num Salão que levam alguns anos para chegar nas ruas, como por exemplo as novas pinturas acetinadas que compõem tramas com detalhes envelopados na carroceria do veículo.
- Sinceridade? Prefiro a pintura duco sobre fibra do meu carro, craquelada pelo tempo. É o tipo de efeito visual que não conseguem reproduzir nos modelos atuais. Tem gente que até enferruja a lataria de propósito, mas o efeito craquelado autêntico é insuperável. É como o rosto sem botox de uma dama de meia idade, cujo charme depende das rugas de expressão.
- Vi num programa de TV que a moda agora é usar estofamentos com a costura despontada...
- Moda? A moda é sempre passageira. Já viu a moda dirigindo carro, por acaso? Quem segue a moda vira passageiro também. Estofamento para mim nem precisa ser de couro: pode ser de courvin, de costura engraxada, cujo cheiro se mistura com o odor da gasolina que vem das frestas do painel de madeira e deixa a gente perfumado depois de uma viagem. Quem nunca botou suas narinas para experimentar isso não sabe o que é guiar de verdade.
- Você falou em painel de madeira. Mas você já viu os painéis dos lançamentos? Tem até telas de leds embutidas que mostram os mapas dos trajetos. Alguns carros já vem conectados de fábrica com um serviço de atendimento ao consumidor.
- Carro conectado? Estou fora. Meu carro é unplugged. Quando dirijo desligo o telefone e deixo no porta-luvas. Se minha esposa vai junto, peço para fazer o mesmo. Tem dias que quero sumir do mapa. Ir para algum lugar que só eu conheça, e que GPS nenhum consegue rastrear.
- Mas se acontecer algum imprevisto, o sistema do carro ajuda a central na localização, para mandar o socorro.
- E você pensa que eu quero ser encontrado? Quem precisa saber para onde fui? Sempre levo um alicate e um jogo de velas. É tudo que preciso para onde costumo ir. Gosto de descobrir o caminho no percurso mesmo. Não suporto ouvir aquelas telefonistas de aeroporto dizendo que preciso fazer uma curva para a direita dentro de 300 metros. Passei a infância inteira ouvindo dos meus pais o que tinha que fazer. Já estou crescidinho.
- E se der uma pane no sistema de injeção?
- Você está me gozando? Meu carro tem dois carburadores. Vou revelar um segredo: faço parte da seita dos carburadores. Nosso objetivo é acelerar o fim da civilização através do aquecimento global. O ecossistema do planeta vai se recuperar em poucas décadas assim que o último ser humano puxar o fio da tomada do último aparelho de ar condicionado.
- Você falou em tomada. No futuro os carros serão todos recarregados por tomadas elétricas.
- É, feito os smartphones. No futuro os aparelhos serão implantados em nossos organismos, para evitar os furtos. Até que chegará o dia em que também seremos recarregados através de tomadas, ao invés de usar a boca para comer em restaurantes. Falando nisso, esse filé de tilápia com alcaparras está sublime.
- Finalmente concordamos em alguma coisa!
Por Jean Tosetto
Um texto com assinatura do Jean é além de imperdível,a certeza de que seremos transportados a um tempo em que éramos felizes e não sabíamos ou então não percebíamos!!!!
ResponderExcluirTextos em que a baratinha é o personagem central mas os leitores se tornam parte da história!!!!
Parabéns!!
Grande abraço
Grato, Custódio! Vale lembrar que o diálogo acima é ficcional: não aconteceu de verdade, mas de certo modo retrata os tempos que estamos vivendo. O escrevi para provocar alguma reflexão. Abraços!
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