MP Lafer diante do canavial: são necessárias grandes extensões de terra para produzir a matéria prima do álcool etílico usado como combustível alternativo à gasolina. |
Em 1979 as ruas de São Paulo e Rio de Janeiro começaram a receber os primeiros veículos particulares movidos a álcool. O MP Lafer foi pioneiro no Rio. Antes disso, somente as frotas governamentais podiam usar tal combustível.
Por Jean Tosetto *
No início da década de 1970 o Brasil vivia um período que ficou conhecido como "Milagre Econômico", quando o país tinha crescimento anual do Produto Interno Bruto acima dos 10%. Os tempos de bonança acabaram em 1973, em grande parte pela eclosão da crise mundial do petróleo, quando os membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo reduziram drasticamente a oferta do produto, elevando o preço do barril em mais de três vezes, desencadeando um processo inflacionário em diversas nações.
Visando diminuir a dependência do petróleo, e consequentemente da gasolina e do óleo diesel, o governo federal, então controlado com mão de ferro pelos militares, lançou o Programa Proálcool nos estertores de 1975, baseado nos conceitos do físico José Walter Bautista Vidal e do engenheiro Urbano Ernesto Stumpf, este considerado como o "pai do motor a álcool".
O primeiro veículo equipado com motor a álcool foi um Dodge Polara, em caráter experimental. O primeiro modelo que teve a produção em série movida a álcool etílico - atualmente denominado como metanol - foi o Fiat 147, em 1979. Nos primeiros anos do programa, apenas veículos para testes e frotas governamentais podiam rodar com álcool, tão somente nas praças de São Paulo e Rio de Janeiro, as únicas até então que detinham os poucos postos de abastecimento para este combustível.
As grandes fabricantes de automóveis instaladas no Brasil desenvolviam motores movidos a álcool mais por pressão do governo do que por iniciativa própria, como fica claro em reprodução de uma carta da VW aos seus concessionários, publicada no jornal O Globo em 15 de novembro de 1979:
"Prezado Revendedor,
Conforme já amplamente divulgado, há anos a VWB desenvolve o "Projeto Álcool". Tais estudos, feitos em estreita colaboração com o Governo, visam a viabilizar o uso de alternativas energéticas, principalmente no campo dos combustíveis líquidos para fins veiculares.
O cronograma de fabricação de modelos VW a álcool prevê, inicialmente, o lançamento do Passat, seguindo-se, pela ordem, o Fusca, Brasília e Kombi. Já a partir de janeiro/fevereiro 1980, esses modelos passarão a ser vendidos, de acordo com o nível de pedidos, aos órgãos governamentais, por enquanto o único segmento autorizado a utilizá-los.
A propósito deste assunto, gostaríamos de prestar-lhe alguns esclarecimentos, que ajudarão seus funcionários nos contatos com os clientes:
1. Conforme as autoridades públicas tem destacado, o Programa Álcool vem sendo desenvolvido para ser uma "alternativa" do uso da gasolina.
2. A venda de veículos movidos a álcool está atualmente restrita aos órgãos governamentais e somente poderá ser ampliada após a implantação de um amplo sistema de distribuição do álcool. Preenchida esta condição, será seguido um plano de comercialização que dará gradativamente preferência às frotas de táxis coletivos. A liberação para clientes particulares é a última etapa do Programa, a ser atingida em época remota, ainda imprevisível.
3. Prevê-se que o carro a álcool custará cerca de 10% a mais que o modelo a gasolina. As notícias sobre compensação indireta deste acréscimo não são ainda claras, exceto quanto ao aumento do prazo de financiamento.
4. Na certa o carro a álcool consumirá entre 10 a 20% a mais que o similar a gasolina e acredita-se que não disporá, por algum tempo, de abastecimento fácil, em todo o território nacional.
5. Os motores a álcool são irreversíveis, isto é, não existe a possibilidade de adaptá-los para utilização de gasolina.
6. Nos carros a gasolina haverá sempre a possibilidade de transformação para uso do álcool. A VWB desenvolve estudos no sentido de oferecer oportunamente solução técnica e economicamente viável para esta adaptação.
Estes argumentos são definitivos para assegurar a comercialização normal dos veículos a gasolina, o que, em última análise, é absolutamente necessário, também, para viabilizar a implantação do programa do álcool carburante."
Mediante a expressa má vontade da Volkswagen em oferecer alternativas para cidadãos comuns comprarem carros movidos a álcool no fim da década de 1970, era de se esperar que os primeiros veículos nesta condição, a rodar nas ruas de São Paulo e Rio de Janeiro, fossem de pequenos fabricantes, com seus motores adaptados por terceiros.
Ao menos foi o que aconteceu no caso do Rio de Janeiro. Coube ao MP Lafer a honra de mais este pioneirismo, não com um automóvel, mas com dois conversíveis movidos a álcool que passaram a trafegar nas vias cariocas, ainda no primeiro semestre de 1979. Com a anuência da Lafer, os motores originais da VW foram adaptados em São Paulo pela empresa Motorit, que tratou de aumentar, também, a capacidade do tanque de combustível de 45 para 92 litros, teoricamente desrespeitando uma regulamentação federal da época, que impunha limites de capacidade para os tanques.
Os dois MPs foram comercializados no Rio de Janeiro pelos revendedores Shaft e Luciana Automóveis. Seus compradores, o contador Wanderley de Souza Sardinha e a cantora Sônia Santos, ainda se beneficiaram com um desconto promocional na Taxa Rodoviária Única, que cobrava 7% do valor de carros movidos a gasolina e apenas 3% para carros movidos a álcool.
Estes MPs eram gastões: faziam de seis a sete quilômetros com um litro de álcool, ao passo que a versão a gasolina fazia mais de nove. A garantia da Lafer, no entanto, era inalterada: seis meses ou dez mil quilômetros, com assistência técnica autorizada através da Saveiro Comercial de Veículos em São Paulo, e Auto Mecânica Teins no Rio de Janeiro.
A reportagem do jornal O Globo quis saber dos primeiros proprietários de veículos particulares movidos a álcool do Rio de Janeiro, as suas impressões sobre a novidade tecnológica. O contador Wanderley Sardinha revelou sua decepção com o motor a álcool:
"Até o início de mês estava satisfeito, tinha rodado com o carro no Rio, sem problemas. No feriado de Finados, resolvi ir a Volta Redonda e surgiram sérios defeitos mecânicos que, se persistirem, pedirei para que o motor seja convertido para gasolina.
Quando subi a Serra das Araras, o carro parou e teve que ser rebocado por um caminhão até uma oficina mecânica, no topo da serra. Pedi, então, que substituíssem a bomba e o veículo voltou a rodar, mas apresentou o mesmo defeito logo depois. Tive que parar umas três vezes.
O jiglê acumula impurezas e, em consequência, o carro falha nas velocidades baixas. Toda semana tenho que tirar o jiglê para limpá-lo: só assim o veículo volta a funcionar. Outro defeito é que o modelo dispõe de tanque especial para 92 litros de combustível, mas o mostrador é o mesmo modelo comum. Assim, quando o ponteiro do mostrador está na reserva, o carro dispõe ainda de 45 litros de combustível."
A cantora Sônia Santos, porém, deu um testemunho claramente positivo:
"O desempenho do carro está ótimo. Rodo com ele no Rio, já fiz uma viagem a Miracema, sem nenhum problema. Optei pelo carro a álcool porque sou uma pessoa entusiasmada pelo Brasil. Acho uma pena que as autoridades ainda não tenham tomado providências para estimular o uso do carro a álcool. Quando fiz minha opção, visei não somente a minha economia individual. Quis dar minha contribuição à redução do consumo dos derivados do petróleo."
Os problemas técnicos apontados por Wanderley, associados à dificuldade de ligar o motor depois de um bom tempo parado, ou com a temperatura ambiental abaixo dos 15 graus Celsius, foram sendo resolvidos na medida da popularização do álcool nas bombas de combustíveis e na oferta de modelos por parte das grandes fabricantes.
Na década de 1980, veículos movidos a gasolina perderam mercado para os carros do Proálcool - situação que se reverteu com a baixa do preço do barril do petróleo nos anos posteriores. A tecnologia do álcool, no entanto, nunca mais seria abandonada no Brasil, com a adição crescente do álcool na própria gasolina, e também com a criação de motores do tipo flex, que funcionam tanto com gasolina quanto álcool (metanol) em qualquer proporção, embora sem a eficiência de um motor puro sangue.
O que importa para o leitor do mplafer.net - acima de tudo - é saber que o MP Lafer desenvolveu um papel pioneiro nesta história. Uma vantagem a mais para contar na próxima roda de conversa entre amigos entusiastas de automóveis antigos.
* Jean Tosetto é arquiteto desde 1999 e editor do site mplafer.net desde 2001. É também autor do livro “MP Lafer: a recriação de um ícone” - lançado em 2012. |
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