A Praça de Águas de São Pedro fica ainda mais bela com a Alfa Romeo sulfurosa. |
Águas de São Pedro é famosa por suas águas medicinais e pelo alto índice de desenvolvimento humano no quadro nacional. É lá que mora uma Alfa Romeo “Giulia” GTV 2000 de 1974, tratada por seu dono como se fosse alguém de sua família.
Por Jean Tosetto *
Dizem que o que você faz de marcante no primeiro dia do ano dará a tônica para o restante deste período. Com isso em mente, pouco importando se é uma superstição ou um mote psicológico, demos partida no carro em direção a Águas de São Pedro, uma instância turística perto de Piracicaba, no interior de São Paulo.
Águas de São Pedro possui pouco mais de três mil habitantes e uma população turística flutuante exponencialmente superior nos fins de semana e feriados. Seu perímetro urbano se estende até as divisas do município – um dos menores do Brasil em extensão territorial. Apesar disso, é um dos melhores lugares para se viver neste país, onde até o transporte público é gratuito.
O que deu fama a Águas de São Pedro foram justamente suas fontes de águas minerais, que muitos garantem ter efeitos terapêuticos para problemas de pele, fígado, rins, estômago e o que mais as pessoas estiverem sentindo. Debaixo do sol escaldante do verão tropical, no entanto, nosso problema imediato era somente a sede, e para isso qualquer água potável basta.
Ingressamos curiosos pelo fontanário municipal para sentir o gosto daquelas águas sulfurosas. À nossa esquerda ficavam as torneiras com a maior fila. Nas torneiras centrais e nas torneiras da direita, sempre no perímetro de uma piscina de águas termais, não havia tanto movimento. O motivo saiu pela primeira torneira aberta: um cheiro que lembrava uma emissão gasosa fisiológica involuntária.
Só isso já desencoraja qualquer marujo para experimentar o sabor daquele líquido. Mas, carambolas, estávamos lá justamente para isso. Quer saber o gosto? Então imagine sorver um suco de ovo de codorna em conserva vencida, com a conserva inclusa.
Fomos para as torneiras centrais, quase inodoras, o que já era um alento. O sabor remetia a um coquetel de bacon com quiabo e água do mar – mexido, não sacudido. O jeito foi se encaminhar para a fila das torneiras da esquerda. Que nos perdoem quem mora em Águas de São Pedro: aquela última água era palatável, mas apenas confirmava a noção de que, se você deseja ter mais saúde, não vai se importar muito com o amargor do elixir.
A tônica do ano não poderia ser esta experiência. Que os goles de saúde façam o seu efeito, mas os sabores deveriam ser outros, nem que fosse o gosto engarrafado de água tônica. Um pote de sorvete de arroz doce, a poucas quadras dali, e uma água de coco gelada, caminhando pelas charmosas ruas da cidade, serviu como atenuante, bem como as sombras do frondoso bosque onde termina a avenida central.
Hora de ir embora: o pessoal da família já estava dando os primeiros sinais de cansaço após um dia de estrada e caminhadas. Vamos para o carro e eis que avistamos uma linda máquina estacionada atrás de nosso utilitário. Era uma Alfa Romeo GTV 2000, vermelha, sedutora e quarentona que ainda conservava o apelido de “Giulia”, fabricada em 1974 – ao menos era o que entregava suas placas.
A visão terapêutica da Alfa GTV estacionada atrás de nosso carro. |
Saquei a câmera fotográfica e logo comecei um ensaio, que seria apenas para consumo interno se não fosse pela presença de espírito de prestar atenção ao redor. Logo avistei um senhor de boné vermelho com o símbolo da Alfa Romeo. “Todo dono de Alfa Romeo é gente fina” - pensei. Ainda não conheço qualquer alfista antipático ou esnobe, por isso me apresentei formalmente.
Bingo! O alfista de Águas de São Pedro, em verdade um paulistano que possui casa na cidade, era a personificação do conceito de gente fina. Seu nome: Erasmo Fila. Ao seu lado estava o neto Guilherme, um garoto sortudo que passeia de Alfa 2000 ouvindo os conselhos do avô, que por sua vez tratou de me explicar cada pormenor de seu automóvel, tão breve consegui um tempo extra na estância, por parte de meus parentes sempre compreensíveis.
O inconfundível cuore formado pelo escudo da marca na calandra. |
Ao contrário das águas sulforosas de outrora, a Alfa do Fila, de sulforosa, tem apenas a carroceria avermelhada, assinada pelo estúdio Bertone, além das propriedades terapêuticas – ao menos para alegrar a vista e o nosso âmago. Dirigi-la pelas estradas da região, entre São Pedro e Charqueada, deve ser ótimo para o sistema circulatório, pois só de passar a palma da mão pelo volante de madeira, com o carro parado, já senti o coração batendo mais forte.
Os instrumentos do painel são de fácil visualização. A pedaleira é ideal para fazer o punta-tacco. |
Tratada a pão de ló e vinho chileno por seu dono, a Giulia de Águas de São Pedro guarda um excitante motor de 2.000 cm³ em seu cofre, com diversas peças forjadas em alumínio para aliviar o peso do conjunto. Seus dois carburadores Weber alimentam quatro cilindros em linha longitudinal, para deleite dos saudosos pela condução de um coupé esportivo de tração traseira.
O câmbio de cinco marchas só pode ser engatado em sua plenitude fora das ruas da cidade, pequena demais para conter a fera italiana com seus mais de 140 cavalos. O mesmo se aplica ao punta-tacco, manobra de redução de marcha que preserva o giro do motor, que os amantes da condução esportiva e clássica adoram praticar – a pedaleira da Alfa GTV parece ter sido projetada para tanto, basta notar o alinhamento do freio com o acelerador.
O cabeçote do motor em alumínio com quatro cilindros em linha da Giulia. |
Os bancos de couro negro possuem ótima ergonomia e um interessante mecanismo de ajuste do encosto para a cabeça nos acentos da frente, revelando uma peça serrilhada de madeira, material orgânico presente também no painel agraciado com ar condicionado. Ali destoa apenas o rádio, que ao invés de tocar fitas cassetes, toca CDs.
Os bancos em couro contam com regulagem de altura no encosto da cabeça. |
A Alfa 1974 do Erasmo foi um ótimo investimento, segundo ele mesmo nos confidencia durante uma volta que demos pelo simpático centro comercial de Águas de São Pedro, com o jovem Guilherme, menino bem aventurado, sentado no banco traseiro. Ele pagou pelo carro, em 1996, pouco mais de quatro mil dólares. O modelo vale atualmente mais de seis vezes tal cifra. Não que o alfista deseje vender sua filha adotiva, pois o investimento foi pago várias vezes com o prazer de guiar uma síntese da paixão italiana sobre rodas.
Uma máquina sexy e quarentona, testada com sucesso nas pistas internacionais. |
Agora sim, ganhamos o primeiro dia do ano. Esta, pelo menos, foi a impressão que ficou quando desci do carro para reencontrar a família, me esperando pacientemente. Passamos longe de Copacabana e seus fogos de artifício, longe também da Avenida Paulista e seus conjuntos sertanejos, mas perto de um legítimo cuore italiano numa cidade acolhedora. Que seja o mote para seguir em frente.
O livro mais esperado dos últimos 40 anos pelos laferistas. |
* Jean Tosetto é arquiteto desde 1999 e editor do site mplafer.net desde 2001. É também autor do livro “MP Lafer: a recriação de um ícone” - lançado em 2012. Este artigo foi publicado originalmente na Revista MotorMachine número 12, em março de 2015.
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